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quarta-feira, 23 de abril de 2008

ARTE COLABORATIVA


COLABORAÇÃO, ARTE E SUBCULTURAS

Grant H. Kester



Introdução
As práticas artísticas colaborativas e coletivas têm experimentado uma espécie de renascença nos últimos 10 anos. Apesar de muitas destas práticas incluírem colaborações entre artistas, minha preocupação principal aqui envolverá projetos onde artistas colaboram com indivíduos e grupos de outras subculturas sociais e políticas. Trata-se de um fenômeno eminentemente global, que vai desde o trabalho do Laboratório de Mídia Sarai com comunidade da cidade de Delhi, até a “Casa de Concreto” de Chantavipa Apisuk, na cidade de Bangcok, incluindo as colaborações de Huit Facettes-Interaction em aldeias em Dakar (1). Trabalhando na bacia do Rio da Prata em Chumpon na Argentina, o coletivo Ala Plastica desenvolveu uma série de projetos interconectados, baseados no princípio da montagem social [social assemblage], em oposição ao grande número de obras de engenharia que têm danificado a infra-estrutura ecológica e social da região. Trabalhando em conjunto com ativistas locais e ONGs, eles iniciaram uma série de plataformas desenhadas para facilitar a resistência local. Trabalhando em uma escala menor, Navjot Altaf produziu desenhos inovadores para bombas de água e para templos infantis na região da Índia central do Bastar, ao longo dos últimos sete anos, em colaboração com as guildas de artistas do povo nativo Adivasi. Ela usou o desenho e o processo de construção para abrir uma série de novos espaços de troca e de interação social entre as mulheres e as crianças nas aldeias do Bastar. Park Fiction, localizado em Hamburgo, na Alemanha, desenvolveu uma forma divertida mas eficaz de planejamento participativo com os moradores de um bairro à beira do cais, prestes a sofrer um processo de gentrificação, que finalmente conseguiu criar pressão suficiente sobre as autoridades locais para transformar o lugar em um parque público, incluindo palmeiras falsas e gramados na forma de tapetes voadores.


Esses projetos possuem uma dimensão pedagógica explícita, evidente no uso freqüente da oficina como um mediador de interação que se desdobra através de gestos e processos de trabalho compartilhado. Além do mais, cada um deles foi produzido em conjunto ou em negociações com grupos ativistas, ONGs e associações de bairro e guildas de artistas, em um formato que Wallace Heim corretamente batizou de “ativismo lento”. Esses projetos colaborativos e coletivos são consideravelmente diversos da prática artística convencional baseada em objetos. O engajamento do participante é realizado pela imersão e participação em um processo, mais do que na contemplação visual (leitura ou decodificação de um objeto ou imagem). A teoria da arte existente é orientada primordialmente para a análise de objetos e imagens individuais entendidas como o produto de uma única inteligência criativa. Essa abordagem privilegia o que eu descrevi como um paradigma “textual”, em que o trabalho de arte é concebido como um objeto ou evento produzido pelo artista de antemão e subseqüentemente apresentado ao observador (2). O artista nunca abre mão de uma posição de comando semântico, e a participação do observador é principalmente hermenêutica. Ao passo que existe uma significativa latitude na resposta potencial do observador ao trabalho (distanciamento clínico, auto-reflexão, choque etc.), este pode não pode exercitar efeito substantivo ou real sobre a forma e estrutura do trabalho, que permanece a expressão singular do consciente autoral do artista. Esse paradigma é apropriado para a maioria do trabalho baseado na imagem ou no objeto, mas torna-se menos útil quando falamos de práticas colaborativas que enfatizam o processo e a experiência da própria interação coletiva. Como acontece com a maioria dos paradigmas, isso pode tanto dar poder quanto desinstrumentalizar. No caso das práticas colaborativas, eu discutirei que eles nos impedem de apreender o que é genuinamente diferente, e potencialmente produtivo nesse trabalho.


1. A parcela maldita


Como podemos dar conta da proliferação de práticas artísticas preocupadas com a criação ou facilitação de novas redes sociais e novas modalidades de interação social? Nicholas Bourriaud, diretor do Palais de Tokyo, em Paris, propôs o conceito de uma estética “relacional” para descrever e conter as várias práticas colaborativas que emergiram durante a última década. Hoje, os contornos gerais do argumento de Bourriaud (aventados ela primeira vez no seu livro de 1998) encontram-se bem estabelecidos. Todos nós vivemos na “sociedade do espetáculo”, em que até mesmo as relações sociais encontram-se reificadas (“O vínculo social tornou-se um artefato padronizado”) (3). Em resposta, um grupo de artistas, no início da década de 1990, desenvolveu uma nova - e de muitas maneiras - inédita abordagem da arte, envolvendo a encenação de “micro-utopias” ou “micro-comunidades” de interação humana. Esses “projetos artísticos conviviais de fácil uso [user friendly]”, incluindo “reuniões, encontros, eventos, [e] vários tipos de colaboração entre as pessoas”, abriu “um rico filão de interação social” (4). Os “modelos tangíveis de sociabilidade” encenados nesses projetos relacionais prometem ultrapassar a reificação das relações sociais. Nesses processos, esses artistas também buscaram reorientar prática artística para longe da expertise técnica ou da produção de objetos, em direção a um processo de troca inter-subjetiva.


Bourriaud oferece uma rearticulação mais ou menos direta da vanguarda convencional, em que a atitude instrumentalizadora, antes entendida como um efeito potencial de exposição à cultura de massa, agora colonizava os modos e caminhos mais íntimos da interação humana. Não mais capazes de desestabilizar esses efeitos através de uma espécie de “engenharia reversa” formal-representacional (isto é, pela criação de objetos e imagens que desafiam, deformam ou complicam os códigos redutivos da cultura de massa) os artistas devem agora confrontá-los no próprio terreno da interação social. Os escritos de Bourriaud, se são por uma lado atraentes, também são esquemáticos. Ele oferece pouca ou nenhuma leitura substantiva de projetos específicos (sua escrita é caracterizada por breves descrições em que o significado particular de um trabalho é presumido mais do que demonstrado). Como resultado, pode ser difícil determinar o que precisamente constitui o conteúdo estético de um dado projeto relacional. Ao mesmo tempo, Bourriaud capturou algo que é inegavelmente central para uma geração recente de artistas. Como o autor escreve, “Hoje, depois de dois séculos de luta por singularidade e contra impulsos grupais... precisamos [reintroduzir] a idéia de pluralidade [e inventar] novas maneiras de estarmos juntos, formas de interação que vão além da inevitabilidade das famílias, guetos de facilidade de uso tecnológico e instituições coletivas. (5)”


Emprestando do trabalho de Felix Guattari e Gilles Deleuze, Bourriaud defende que as práticas artísticas relacionais desafiam a “territorialização” da identidade convencional com uma compreensão “plural, polifônica” do sujeito. “A subjetividade só pode ser definida”, escreve Baurriaud, “pela presença de uma segunda subjetividade”. Ela não forma um ‘território’ exceto baseado em outro território que encontra... ela é modelada no princípio da alteridade. (6)” Essa profissão de fé na nas verdades do “plural” e no sujeito descentralizado na crítica da arte é agora rotina, se não de rigueur. Existe alguma tensão, não obstante, nos os esforços algo extenuantes de Bourriaud para estabelecer fronteiras claras entre as “novas maneiras de viver juntos” que ele privilegia em seu próprio trabalho curatorial (de artistas tais como Pierre Huyghe, Liam Gillick, Rirkrit Tiravnija, e Christine Hill) e um Outro abjeto, incorporado na tradição socialmente engajada de prática artística colaborativa que se estende até a década de 1960. A partir do trabalho de Conrad Atkinson, Grupo de Artistas Argentinos de Vanguardia, David Harding, e Helen e Newton Harrison, passando por Suzanne Lacy, Peter Dunn e Loraine Leeson, Carole Conde e Karl Beveridge, Group Material, e Welfare State, e chegando a grupos como Ala Plastica, Platform, Littoral, Park Fiction, Ultra Red e muitos outros, encontramos uma gama diversificada de artistas e coletivos trabalhando em colaboração com ativistas ambientais, sindicatos, protestos anti-globalização e muitos outros. Essa tradição não apenas está ausente do relato de Bourriaud, mas também é abertamente desconsiderada como ingênua e reacionária. “Qualquer posição que é ‘diretamente’ crítica da sociedade”, escreve Bourriaud, “é fútil.” Bourriaud oferece uma ameaçadora descrição da prática artística engajada socialmente que marcha bota-a-bota com um programa político vagamente stalinista (“Está claro que a era do Novo Homem, de manifestos orientados em direção ao futuro e clamores para novos mundos prontos a ser adentrados e vividos estão terminantemente acabados. (7)”


A caricatura de Bourriaud, que reduz toda a arte ativista à condição do realismo socialista da década de 1930, fracassa em transmitir a complexidade e diversidade da prática de arte socialmente engajada das últimas décadas. Mesmo os críticos de Bourriaud compartilham esse desgosto quase visceral da arte socialmente engajada. Clarie Bishop, escrevendo sobre Bourriaud na revista October, assegura seus leitores: “Eu não estou a sugerir que obras de arte relacional precisam desenvolver um consciente social maior – fazendo trabalhos escolares sobre o terrorismo internacional, por exemplo, ou dando refeições gratuitas a refugiados [free curries to refugees]” (8). Para Bishop, a arte pode se tornar legitimamente “política” apenas indiretamente, através da exposição dos limites e contradições do próprio discurso político (as exclusões violentas implícitas no consenso democrático, por exemplo) a partir da perspectiva semi-distanciada do artista (essa também é a base da ansiosa afirmação de Thomas Hirschorn, quando ele diz que não é um “artista político”, mas sim, um artista que “faz arte politicamente”). Dentro dessa visão, artistas que escolhem trabalhar em aliança com coletivos específicos, movimentos sociais ou lutas políticas, inevitavelmente estão destinados a decorar carros alegóricos do desfile de Primeiro de Maio. Sem o distanciamento e autonomia da arte convencional para isolá-los, eles estão condenados a “representar”, da maneira mais ingênua e fácil possível, uma questão política dada ou um público específico. Este destino é ainda mais trágico se considerarmos que o poder real da arte reside precisamente em sua habilidade de desestabilizar e criticar as formas convencionais de representação e identidade. A arte, de fato, não tem nenhum conteúdo positivo, mas é mais apropriadamente entendida como um modo auto-reflexivo de análise e crítica que pode ser aplicado a virtualmente qualquer sistema de significação (identidade individual e coletiva, discurso institucional, representação visual etc.) que falha reconhecer adequadamente sua contingência necessária.


Esse distanciamento é necessário porque a arte está em constante perigo de ser reduzida à condição de cultura de consumo, propaganda, ou de “entretenimento” (formas culturais predicadas na imersão em vez de uma distância crítica recôndita). Ao invés de seduzir o observador, a tarefa do artista é mantê-lo a certa distância, inculcando um distanciamento cético (definido em termos de opacidade, alienação, estranhamento etc.) que faz paralelo com o insight oferecido pela teoria crítica acerca da contingência do significado social e político. A manutenção dessa distância (incorporada literalmente em projetos como o Muro Fechando um Espaço, de Santiago Sierra para a Bienal de Veneza de 2003) requer que o artista retenha o completo controle sobre a forma e a estrutura do trabalho. A prática relacional é assim caracterizada por uma tensão entre dois movimentos. Uma delas ocorre ao longo de um contínuo que vai do visual ao háptico (o desejo de literalizar a interação social em um espaço não virtual), e a outra percorre um contínuo que vai da obra como uma entidade pré-concebida à obra entendida como responsivo improvisacionalmente e situacionalmente. Para preservar a legitimidade da prática relacional como uma expressão hereditária da vanguarda, críticos como Bourriaud e Bishop precisam privilegiar o primeiro movimento sobre o segundo. É por essa razão, eu sugiro, que alguns dos projetos relacionais de Bourriaud retém um status essencialmente textual, em que a troca social é coreografada como um evento a priori para o consumo do público (9). Em adição a à interpretação desconstrutiva naturalizante apresentada como a única métrica apropriada para a experiência estética, essa abordagem posiciona o artista em uma posição de descuido [oversight] ético-adjutório, desvelando ou revelando a contingência de sistemas de significado aos quais o observador de outra forma se submeteria sem pensar. Resumindo, não se pode confiar no observador (10). Daí a profunda desconfiança tanto de Bourriaud quanto de Bishop em relação às práticas artísticas que abrem mão de alguma autonomia dos colaboradores e que envolvam o artista diretamente nas (sempre e de antemão comprometidas) maquinações das lutas políticas.


Em um nível, este persistente desconforto com a arte ativista é típico de intelectuais pós-Guerra Fria, embaraçados com trabalhos que evocam ideais esquerdistas. Precisamente o que fazem artistas relacionais como Rirkrit Tiravanija, Thomas Hirschorn, Pierre Huyghe e Jens Hanning ser “novos”, dentro desta visão, são suas tentativas de redefinir coletividade e troca inter-subjetiva fora dos referentes políticos existentes, implicitamente retrógrados (até que ponto seus projetos realmente alcançam um significativo remodelamento de coletividade está aberto à discussão). Os modestos gestos empregados pelos artistas de Bourriaud (oferecer-se para lavar a roupa suja de alguém, pagar uma cartomante etc.) arriscam-se a ser apropriadas a perigosos grand recits que serão, inevitavelmente, revelados como reacionários e comprometidos (11). Pareceria relativamente incontroverso localizar os projetos relacionais abraçados por Bourriaud (ou Bishop) em um contínuo junto com os processos de projetos socialmente engajados que empregam a interação colaborativa. Porém, para ambos os escritores, o trabalho ativista dispara um tipo de resposta sacrificial, como se até mesmo reconhecer esse trabalho como “arte” de alguma forma ameaça a legitimidade de práticas que eles apóiam (12). Uma versão reduzida da arte engajada ou ativista (isto é, as “refeições gratuitas para refugiados” de Bishop) assim funcionam como uma repulsa necessária, representado o Outro abjeto e pouco sofisticado da arte crítica, relacional, desta forma imprimindo certa coerência a um corpo de trabalho que poderia de outra forma ser descartada como não-substancial.


2. A Mão Invisível


Essa dispensa displicente, até de desprezo, da arte “política”, está ligada a um profundo ceticismo em relação à ação política organizada em geral. Ela encontra justificação intelectual nos escritos de figuras como Felix Guattari, Gilles Deleuze e Jean-Luc Nancy; pensadores franceses que amadureceram na era pós-Segunda Guerra Mundial, e que têm status quase canônico no cenário da arte contemporânea. A despeito de significativas diferenças de inflexão e ênfase, eles compartilham de uma antipatia decidida pela ação política organizada, coletiva e, ao invés disso, identificaram o corpo individual ou “singularidade” (o substituto de Deleuze para a linguagem desacreditada do indivíduo) como o principal foco de resistência (por exemplo, a revolução “molecular” de Guattari, e a “biopolítica” de Foucault etc.). Suas capacidades de imaginar formas políticas alternativas foram fixadas de forma decisiva pelos eventos de Maio de 1968, que funcionaram como uma espécie de estêncil, ditando tanto os limites quanto as possibilidades de todas as formas futuras de resistência política. Traumatizados pelo fracasso do levante dos estudantes e dos trabalhadores de 68 em catalisar uma transformação de grande escala na sociedade (em parte devido à paralisia do Partido Comunista Francês), eles retiveram um cinismo duradouro em relação aos grupos políticos organizados: eles podem apenas ser corruptos, atolados em burocracia e insensíveis aos desejos reais das pessoas que eles alegam “representar”. Junto com isso veio uma identificação igualmente poderosa com a energia espontânea e não planejada dos protestos de rua parisienses, que pareciam representar uma manifestação literal das energias acumuladas do corpo e do “desejo” contra as instituições reificadas do coletivo, da vida pública, tanto à esquerda quanto à direita. Era necessário que estes protestos fossem vistos como eventos descoordenados, quase intuitivos (no Anti-Édipo, Deleuze e Guattari comparam-nos ao “vapor escapando de um aquecedor”). O resultado é uma oposição um tanto simplista entre a razão e o corpo. Em seus casos mais pronunciados ela leva a uma tendência paralisante de igualar a razão (em sua maldade totalizadora) com agência consciente e com a contenção e des-radicalização de um desejo pré-existente (e implicitamente puro). A ação política correta precisa, então, não ser baseada no exercício da volição consciente ou no impulso organizador (a agência, ou para parafrasear Michael Hardt e Toni Negri, trata-se meramente do “presente envenenado” da ontologia ocidental).


Deleuze, Nancy e outros têm pela frente um significativo desafio quando tentam descrever precisamente como todos este “corpos”, “singularidades” e “mônadas” díspares interagiriam ou trabalhariam coletivamente. O quadro necessário para construir um senso de solidariedade ou para comunicar e trocar informação é freqüentemente reduzido a algum não sei quê metafísico (desejo, finitude, élan vital etc.). Nos relatos mais poéticos de Maio de 1968, uma unidade (não totalizante e temporária) é estabelecida dentre os participantes quase que magicamente, sem planejamento, diálogo, ou a formação de consenso para coordenar as ações taticamente. Hardt e Negri projetaram esta imagem particular a uma escala global em seu livro Império. Eles argumentam que o único modo apropriado de resistência aos novos modos dispersos e sutis do capitalismo contemporâneo é esporádica, descoordenada e singular. Não há necessidade de desafiar as instituições do poder econômico e político com formas coletivas de resistência ou construir alianças políticas através de fronteiras nacionais, pois o poder se reconfigurou cuidadosamente para ser descentralizado. Assim, precisamos encarar as forças rizomáticas do capital com “fluxos” deleuzianos de migração e gestos locais, não planejados. Para Hardt e Negri, o ato de representar uma vontade política dominante, longe de ser um passo necessário para a organização da resistência aos interesses políticos e econômicos dominantes, simplesmente constitui uma outra forma de opressão. Apontando para as conseqüências negativas da construção das nações cubana, vietnamita e argelina pós-coloniais, eles rejeitam “qualquer estratégia política” que implique que a nação estado possa prover alguma resistência legítima ao capital global (13). Em sua análise, a única função possível do estado é negativa: conter o desejo e objetivar a diferença com base na identidade coletiva monolítica (a nação,o povo etc.)


Além do mais, a classe trabalhadora, entendida como agente de luta política e transformação coletivas, é irrelevante. Ela foi substituída por um exército incipiente de trabalhadores espalhados pelo globo, cujo opção mais radical é a migração “nomâdica” aos centros metropolitanos do mundo desenvolvido para servir de mão-de-obra barata. A essas “multidões” se permitirá um papel político, mas apenas na medida em que sua resistência permaneça resolutamente “fragmentada” e “dispersa”, por medo de que eles, de outra forma, formem um senso perigosamente fascista de solidariedade (14). Note que para Hardt e Negri isso não é simplesmente uma questão de trabalhar em frentes múltiplas (tanto os modos de resistência locais e individuais quanto os mais coletivos). Trata-se da proibição de qualquer ação política que dependa da experiência da luta política; essas ações poderiam apenas levar à estrada escorregadia que leva ao Gulag do totalitarismo nacionalista. Hardt e Negri não permitiriam nenhum isolamento cívico ou institucional que separasse as forças predatórias do capital corporativo global e os pobres e a classe trabalhadora, para quem até mesmo o consolo de uma “solidariedade comunicável” é negada. Sua análise opera através de uma espécie de teleologia negativa onde todos os resultados possíveis da lógica política e cultural da modernidade são antecipados na experiência específica da Nação Estado Euro-Americana. Não há nenhum ponto em tentar organizar sindicatos na China ou trabalhar em direção a um governo mais igualitário na Nicarágua, porque “nós” (europeus brancos) já percorremos esta estrada. A alergia de Hardt e Negri às entidades políticas coletivas, das quais o estado é a ur-forma, se estende até mesmo àquelas organizações não governamentais (ONGs) e grupos ativistas que operam em proximidade com o poder estatal. Assim, agências humanitárias como Medicine sans Frontier ou Oxfam são, sustentam eles, “completamente imersos no contexto biopolítico do... Império” e “a mais poderosa arma pacífica da nova ordem mundial” (15).


No cânon emergente da estética relacional encontramos um desejo enfático de estabelecer divisões claras entre as práticas culturais ativistas e a arte. Eu sustento, no entanto, que alguns dos mais desafiadores projetos de arte colaborativa estão situados dentro de um contínuo com as formas de ativismo cultural, mais do que sendo definidas em oposição pura e simples a elas. Longe de ver este tipo de deslize categórico como algo a ser temido, eu acredito que é tanto produtiva como inevitável, dado o período de transição que vivemos. Essa é, de fato, uma característica persistente da arte moderna criada durante momentos de crise e mudança histórica (o Dadaísmo e o Construtivismo no rastro da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, a profusão de movimentos e novas práticas que emergiram do redemoinho político da década de 1960 e de 1970 etc.). No Weltanschauung contemporâneo, que descrevi acima, somos apresentados duas opções: retiro para uma autonomia estética e distanciamento ou adiamento irônicos, enquanto esperamos por um momento messiânico em que uma “demanda insurrecional radical” emergirá magicamente das legiões fragmentadas da multidão (16). De minha parte, eu acredito que o locus decisivo para a transformação política e cultural será precisamente no nível dos coletivos, sindicatos, grupos ativistas e ONGs progressistas em conjunto com as lutas e movimentos políticos que vão desde o local até o transnacional.


Vivemos um momento de grave perigo e grande possibilidade, enquanto o capital se reconfigura de maneira global cada vez mais efetivamente. Neste esforço, tem sido necessário solapar a legitimidade do estado, ou de qualquer outra forma de autoridade coletiva ou política que possa desafiar os imperativos do mercado. O objetivo não é desmantelar o aparato do estado, mas sim fazê-lo inteiramente convergente com as necessidades do capital e daquela pequena facção do público que se beneficia mais diretamente das operações do mercado. A pressão é tanto externa, encarnada nas políticas neo-liberais do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, quanto interna, tal como evidenciado pelo crescente controle corporativo sobre o governo dos Estados Unidos. Nos EUA, o resultado tem sido uma gradual erosão de toda uma infra-estrutura de política pública e de deslize institucional que tinham sido planejados para restringir ou desafiar o poder corporativo ((por exemplo, o desmonte das agências reguladoras como a Comissão Federal de Comunicações e a Administração de Alimentos e Drogas, e a privatização ou eliminação de programas como a Ajuda às Famílias com Filhos Dependentes, Medicaid e mesmo a educação pública)


Isso nos leva a uma volta completa, um retorno à cultura política do final do século XIX, um período de influência corporativa sem freios e de corrupção política nos Estados Unidos. A política do Presidente Bush de apoiar-se em iniciativas “crentes” (faith-based) como substituto para as várias formas de assistência pública nos leva de volta, bem literalmente, à crença típica da era vitoriana que a pobreza é um sinal de fracasso moral. As energias destrutivas do mercado e do capital monopolista deslanchados durante a “Era de Ouro” levaram à crucial luta pela constituição da sociedade civil e a definição do bem público. Esse período testemunhou a formação de uma rede nacional de partidos políticos (anarquistas, socialistas, populistas, agrários etc.), sindicatos, organizações ativistas (dedicados a temas que iam desde o pacifismo e direitos trabalhistas até o trabalho infantil e liberdade de expressão), assistentes sociais, partidários do sufrágio, fundações progressistas, publicações, programas educacionais, e muito mais. A despeito de tensões significativas entre esses atores sociais, eles constituíram uma poderosa cultura de oposição política. Operando como um governo paralelo, eles permaneciam fora mas adjacentes às instituições estatais existentes, fazendo-as prestar contas dos ideais políticos democráticos que tantas vezes eram sacrificados em nome dos interesses dos ricos e poderosos. Eles desenvolveram uma presença cívica através de elaboradas exposições públicas (sobre temas como a reforma da habitação pública, imigração, saúde pública e trabalho infantil), o esboço de legislação modelo, a criação de levantamentos destinados a revelar as “forças sociais” subterrâneas que estruturavam a cidade industrial, e uma gama de outras atividades que efetivamente pressionavam os agentes governamentais a prestarem contas ao público como um todo.


O modo retórico da Era Progresista americana encontra paralelo na descrição de Jacques Ranciére do discurso público da classe trabalhadora francesa durante a Revolução de Outubro. A “declaração revolucionária de igualdade do homem e do cidadão perante a lei”, como escreve Ranciére, apresentava um desafio radical. “Essa afirmação implica em uma plataforma de argumento muito peculiar. O sujeito trabalhador que se inclui nela como discursante tem que se comportar como se tal palco existisse, como se houvesse de fato um mundo comum de discussão – que é eminentemente razoável e eminentemente não razoável, eminentemente sábio e resolutamente subversivo, já que tal mundo [um mundo onde trabalhadores podem reclamar o direito ao discurso público] não existe... ” (17). Esse dimensão pré-figurativa da cultura política, o “como se...” dos trabalhadores de Ranciére, é de importância particular, e pode revelar algo de potencial para nós no que toca uma prática artística socialmente engajada em nossos dias. Um século depois, novamente encontramo-nos em um momento em que as corporações exercitam poder acachapante sobre as nossas vidas diárias; um período caracterizado por diferenças massivas de renda e de privilégios, em que a obediência à “lei natural” do capital é abraçada pelos escalões mais altos de nosso sistema político (e no qual o poder regulador do estado sobre o mercado, ganho com tanto custo no século anterior, foi quase totalmente entregue e perdido). É um momento, como já afirmei acima, tanto de perigo quanto de oportunidade. Enquanto as narrativas políticas perdem sua legitimidade, espaço se abre para novas histórias, novos modelos de organização política e novas visões para o futuro. É esse senso de possibilidade, eu acredito, que anima a notável profusão de práticas artísticas contemporâneas preocupadas com a ação coletiva e engajamento cívico, não apenas dentro dos Estados Unidos, mas também globalmente.


3. Identidades Colaborativas
Esse engajamento experimental com novas formas de coletividade e agência é evidente no trabalho Park Fiction na Alemanha, onde eles reinventaram o processo de planejamento urbano participatório como um jogo imaginativo. A qualidade especulativa deste trabalho literalmente toma corpo em seu nome (a “ficção” de um parque), e na audácia de imaginar um parque público em lugar de altos e caros prédios de apartamentos. Mais do que simplesmente protestar e criticar o processo de gentrificação que começou a desdobrar-se ao redor do cais de Hamburgo (uma área que abriga uma população trabalhadora e diversa), Park Fiction organizou um “processo paralelo de planejamento” que começou com a criação de plataformas alternativas de troca entre os residentes que lá moravam (“músicos, sacerdotes, uma diretora de escola, um cozinheiro, donos de cafés, barmen, um psicólogo, ocupadores [squatters], artistas e intervencionistas residentes”). O elemento de fantasia é aparente nos planos já desenvolvidos para o parque, incluindo a Ilha do Teagarden [Jardim de tomar chá] , que apresenta palmeiras artificiais e é rodeada por um elegante banco de 40 metros de comprimento vindo de Barcelona, um Solarium Aberto e um Tapete Voador (uma área gramada na forma de ondas, inspirada pelo palácio do Alhambra). Park Fiction combina este espírito divertido com uma sensibilidade tática bem desenvolvida, e um entendimento sofisticado da realpolitik envolvida no desafio a poderosos interesses econômicos. Eles foram capazes de construir em cima uma tradição de resistência política organizada na área ao redor do cais de Hamburgo que vem desde a ocupação do bairro do Hafenstrasse (“rua do Cais”) durante a década de 1980, quando os residentes locais tomaram o controle de vários quarteirões na cidade e efetivamente impediram os esforços da prefeitura em despejá-los. Os residentes da Hafenstrasse mobilizaram o teatro de rua, uma rádio pirata, pintura mural e outras práticas culturais durante a ocupação, para desafiar a polícia, ganhar a atenção da mídia, e encorajar um senso de solidariedade e coesão com o bairro sitiado. O integrante do Park Fiction Christoph Schäfer descreve o poder de ação que essa história ofereceu no processo de trazer o parque à vida:


O parque está situado diretamente à beira da água. É um lugar muito caro, altamente simbólico, onde o poder gosta de se fazer representar... Reclamar este espaço como um parque público desenhado pelos residentes realmente significa desafiar o poder – não se trata de uma esquina alternativa ou um parquinho social que os pais podiam se dar ao luxo de ceder. A resistência poderia apenas ser vencida através de uma rede na comunidade muito ampla e inteligente, por um novo grupo de táticas, truques, sedução e teimosia, além de uma ameaça não dita que pairava sobre tudo isso: que uma situação militante poderia se desenvolver de novo, o que seria custoso e ruim para a imagem da cidade, barrando investimentos em todo o bairro (18).


Foi necessário que Park Fiction desenvolvesse uma relação estreita com grupos ativistas e organizações do bairro. Como descreve Schäfer, eles somente colaboraram com instituições que tinham “credibilidade” local. Isso incluía um Centro Comunitário, que era conhecido por oferecer serviços legais anônimos e gratuitos, assim como uma escola que apoiara a ocupação da Hafenstrasse durante a década de 1980.



Ao operar em um contexto cultural bastante diferente, o trabalho do coletivo argentino Ala Plastica encontra paralelo de várias maneiras no trabalho de Park Fiction. O Projeto AA, situado na bacia do Rio da Prata perto de Buenos Aires, mobilizou novas formas de ação coletiva e criatividade de modo a desafiar os interesses políticos e econômicos por trás do desenvolvimento de larga escala da região. A construção de uma enorme linha de trem e rodovia ao longo das últimas duas décadas fez piorar as enchentes e destruiu as economias de pesca e turismo no delta do rio, levando a altos níveis de desemprego e deterioração de serviços sociais. O Ala Plastica iniciou o Projeto AA com um processo de mapeamento espacial e cognitivo, desenvolvido em colaboração com os residentes da área, junto com um estudo bio-regional do delta dos rios da Prata e Paraná. Esse procedimento de mapeamento foi combinado com vários exercícios organizados de modo a recuperar e coletar conhecimento local sobre a região. Ala Plastica procurou fazer incluir os insights dos residentes para dentro dos custos incorridos na construção do complexo ferroviário Zárate-Brazo e da planejada ponte Punta Lara Corona, que têm danificado o ecossistema e o tecido social das comunidades locais. Para desafiar a autoridade institucional e o modo de pensar “tecno-político” dessas agências governamentais e corporativas responsáveis por estes projetos, Ala Plastica trabalhou com os residentes da área para que articulassem suas visões da região através da criação de plataformas de comunicação e redes para a cooperação mútua. Eles ajudaram a desenhar módulos de habitação de emergência para uso durante os períodos de enchentes, e ofereceram infra-estrutura e treinamento de comunicações, com foco especial sobre as mulheres. Construindo sobre uma tradição do cultivo do chorão, que data do século XIX, o Projeto AA identificou novos usos para esta árvore e encorajou a emergência de economias locais baseadas na produção do chorão. Ao longo do Projeto AA, o Ala Plastica trabalhou em estreita relação com os grupos ativistas locais, ONGs e outros, incluindo a Cooperativa de Produtores da Costa de Berisso e a Rede de Saúde e Plantas da Argentina. A Escola #25, situada perto do complexo Zárate-Brazo, constituiu uma importante base de operações. Como notaram, a Escola #25 é reconhecida como um centro comunitário ativo... além de seu papel como instituição tradicional de ensino, ele serve como um centro social de ajuda social e econômica para aproximadamente 100 estudantes e suas famílias” (19).


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